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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Paisagem

Ensina-me a passar

Henry Gustav Molaison faleceu há um ano, aos 82 anos. Conhecido no meio científico, até a sua morte, somente pelas iniciais "H.M.", foi ele peça central nos estudos dos mecanismos de memória que se sucederam após a fatídica operação cerebral. Tudo começou aos 10 anos, três anos após sofrer uma queda da bicicleta que culminou em traumatismo craniano e perda da consciência por poucos minutos. Crises epilépticas recorrentes e intratáveis acabaram por levá-lo às mãos do famoso neurocirurgião Wilder Penfield, que ressecou, em 1953, as porções anteriores de ambos os lobos temporais de H.M.. Após  a cirurgia, a surpresa: H.M. tornara-se incapaz de memorizar quaisquer fatos novos. Avaliado pela renomada neuropsicóloga Brenda Milner, seu relatório concluiu: “H.M. esquece eventos diários tão rápido como eles ocorrem, aparentemente na ausência de qualquer perda intelectual geral ou distúrbio perceptivo. Ele subestima sua idade, pede desculpas por esquecer o nome das pessoas. É como se tivesse acordado de um sonho. Cada dia é único em si mesmo”. Estudos posteriores demonstraram que a estrutura chave lesada foi o hipocampo, parte constitutiva dos lobos temporais e, desde então, claramente relacionada à função de memorização de fatos episódicos (p.ex., "ontem comi madeleine acompanhada por um cálice de Sauternes") e declarativos (p.ex., "Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil"; "a capital de Angola é Luanda").
Se no mundo real tivemos H.M., a ficção de J.L. Borges nos legou o seu antípoda: o hipermnésico Funes. Sem aviso prévio, o matuto personagem argentino passou a memorizar tudo e qualquer coisa, sempre em seus minímos detalhes. E, por isso mesmo - esse detalhamento exagerado-, Funes perdeu a capacidade de abstração. "Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos."
Fica claro que a medida certa é o caminho do meio: nem H.M., nem Funes.

O que motivou o post acima foi a leitura do recém-lançado ensaio "O Ressentimento na História" (ed. Agir, 221 páginas), do historiador francês Marc Ferro. Diz ele que o ressentimento é a força que origina guerras e norteia ideologias, à esquerda ou à direita. Afogá-lo - esquecer o ressentimento - poderia  ter poupado a vida de muitos inocentes. Ainda há tempo para esquecê-lo? Que os versos de Alberto Caeiro tornem a nossa caminhada mais sábia.

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

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